A Câmera fotográfica e a miséria


- Ah que grande momento da história da humanidade estou prestes a registrar! Cadáveres aos montes espalhados pelo chão! Vamos, apressa-te criatura de barro! Preciso de mais acontecimentos para inflar minha inexaurível busca por glória! Oh quanto sangue, armas e bandeiras de várias nações ...

- Não te apresses, infame produto da raça dos seres de barro!  Sou a miséria que resulta das maquinações desses humanos gananciosos, cujo único escopo é a glória doentia das guerras, dos impérios e da acumulação de riquezas e não consigo entender por que tu te consolas comigo. Por que ao invés de tragédias não te ocupas da felicidade?

- Não tens que entender minhas razões, inválida e desprezível figura, pois fui concebido pelo desejo humano de tornar a vida mais confortável, puseram-me numa posição honrosa na história das invenções dos seres de argila e fui criado para registrar com imagens os momentos que, meus senhores, consideram mais cruciais no seu catastrófico trajeto! Tu, ao contrário, não foste resultado de anseios dos seres de argila, além disso pareces não ter origem em lugar algum, pois bem sabes que ao homem foi dado saber quando e sob quais circunstâncias se criou a tecnologia da máquina fotográfica, mas sobre a miséria nada sabemos, sabemos que é indesejável e que acompanha como uma sombra inescapável todos os sofrimentos humanos!

-  Tu não mentes, digna invenção dos mortais ao dizer que sou gestada pelas tragédias, mas o que estou a questionar, é a razão de sua obsessão por mim. Por que me persegues nas guerras, nos assassinatos, nas más colheitas, nas crises de fome, nos furacões e terremotos! Por que quando dizem que aqui ou acolá há sangue e lágrimas tu pões sebo as canelas para não perder um único momento do sofrimento das tristes figuras de terra? Ao invés do mim, não podias empenhar-se no seu irreprochável oficio quando te dissessem aqui há alegria e amor ...

- Compreendo as tuas razões, inglório e indesejável infortúnio dos homens, mas tu devias interrogar aqueles que me criaram, pois nem eu sei explicar as razões do meu ofício, apenas sirvo fielmente aos meus senhores qual um escravo que moureja sem pagamento ao seu proprietário.  Já viste um escravo interrogar o senhor sobre os motivos do trabalho duro sem recompensa? Pois então, cara amiga do desespero, também não me foi dado saber as razões do meu ilustre trabalho, apenas cumpro os desígnios dos homens. Se me mandam a uma guerra entre povos onde há crianças e velhos sendo mortos, tenho que registrar essas aberrações do comportamento dos seres pensantes sem em nenhum instante refletir sobre a irracionalidade de tanta maldade e gosto pela barbárie. A propósito do que estamos conversando tenho uma das mais belas estórias que certamente a humanidade desconhece. Certa vez, um dos meus senhores foi à um vilarejo paupérrimo no continente dos seres de pele negra para fotografar as cenas dantescas de um povo que estava em guerra e ao entrar numa casa que compunha aquele triste cenário de ruinas, deparou-se com uma mulher solitária, que amamentava um bebê numa arrastada e macilenta canção de ninar. Observou a tragicidade de tudo aquilo, mas num arrebato de lucidez deu-se conta da violência e desmedida crueldade do seu trabalho. Pensou na mulher de “seios secos” envergada em farrapos tentando desesperadamente alimentar seu filho e na sua privilegiada condição de trazer àquilo aos honrosos autos da história. Tirou a foto, mas senti nos seus dedos um leve tremor. Estava de “barriga cheia” violentado a pobre mulher de “seios secos” que carregava um filho desnutrido aos braços...    

- Que digno oficio te puseram a praticar! Mas reconheço que tu não tens culpa nenhuma do que os homens decidiram fazer contigo, mas como tu, também não tenho controle sobre as sanguinárias ações humanas e sou uma execrável figura que resulta das guerras, impérios, fome e toda sorte de tribulações que são insistentemente cultivadas pelos seres de barro. Perdemo-nos numa infrutífera discussão filosófica, digníssima descendente da roda, pois temos funções diferentes mas reconheço que dependo dos teus registros para desfilar diante das figuras de barro com os louros da fama e o que seria de ti, sem os sofrimentos, as lágrimas e todo esse sangue? Paremos, pois, de emprenhar com mais especulações a elevada arte da filosofia e sigamos o nosso caminho, se já nos é dado tanto trabalho, para que diabos arranjaríamos mais um...

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