Um grande bacharel
João era um rapazote pobre , de pele escura , suficientemente clara para não ser chamado de negro , " neguinho" ou " negão", mas ainda assim não enxergava os impedimentos sociais para tornar-se um "bacharel de toga" . Embora as portas dos templos de saber estejam ao alcance de qualquer cidadão seja ele um membro da casta alta ou um mero pária , e as escolas de erudição tenham se multiplicado de uma forma espantosa na república dos paletós intocáveis , algumas portas permanecem fechadas e os diplomas de inestimável prestígio social , que dão acesso as carreiras mais almejadas da nação continuam sendo um privilégio da nobreza.
João dos Santos era um jovem que conseguira suportar as agruras da pobreza e com esforços dignos de um Hércules nunca parava de estudar para o " grande exame", enfiou na cabeça o sonho de ser doutor , ainda que a cor de sua pele e seus traços fisionômicos pudessem parecer repulsivos àquela quimera.
Foi aprovado no "grande exame" , chorou , soluçou , deu saltos de alegria, abraçou a mãe e observou uma cadeira quebrada no canto da casa ... João fizera-se aluno do "curso das togas" e ansiava trocar o aviltante título de "mulatinho de Dona Cícera" pelo de doutor João dos Santos . Embora não gostasse do seu sobrenome , pois em alguma aula de história ouvira dizer que "dos Santos" era sobrenome de improviso dado aos escravos forros , não havia como fugir dele . Então no primeiro dia de aula no sagrado templo do saber o "mulatinho de Dona Cícera" esquadrinhou o armário e conseguiu achar uma camisa de linho e uma calça ligeiramente desbotadas. Precisava também de um par de sapatos e achou o único par que possuía , um presente que sua madrinha devia ter lhe dado aos quinze anos ...
Além do apuro na vestimenta, João usara um perfume que ganhara na "rifa" de Dona Zefinha . Com tantos disfarces , parecia ter adquirido um pouco de dignidade para se tornar um bacharel respeitável , versado no latim inócuo dos calhamaços jurídicos ...
Entrou na sala , ajeitou a camisa velha e o cabelo crespo ...
Agora o doutor de pele levemente escura já segurava o vade mecum , livro sagrado dos doutores de toga...
Depois de um mês escarafunchando todos aqueles termos em latim , já conseguia papaguear alguns , uma expressão que o encantava em particular: conditio sine qua non .Embora desconhecesse o significado da maioria das expressões latinas que tentava pronunciar , achava elegante gaguejar todo aquele latim ...
Enfim , doutor ! João dos Santos finalmente segurava o diploma de bacharel na ciência jurídica e deixara para trás a abjeta condição de " mulatinho de Dona Cícera" e fazia-se doutor ...
Conseguira o diploma , mas lhe faltava muita coisa para merecer o título de "bacharel de toga"... Não tinha sobrenome pomposo , ternos elegantes , origem social abastada ... Assim como a liberdade da lei áurea resumia-se a um pedaço de papel de função meramente decorativa , aquele mulatinho que se atrevera a formar-se bacharel e aprender o latim dos doutores de toga , deu-se conta que seu diploma tinha o mesmo valor decorativo daquela lei estéril ...
Com diploma pendurado na parede , João dos Santos tornou-se empregado numa fábrica ... Eis aí mais grande bacharel para a república dos bois!
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