A missão

Caira no marasmo dos seus 30 e poucos anos e lera quase todos os grandes escribas do Ocidente , de Platão à Kafka e cada ideia nova que descobria , afastava-lhe mais de suas ideias de vida simplórias . Era um filosofar que parecia nunca ter fim , pois quando se apaixonava pelo realismo cínico de Machado de Assis , eis que descobria Flaubert , Balzac e Eça de Queirós e o seu espírito remexia-se daquelas ideias de uma sociedade livre das amarras das religiões e da moralidade cristã ... Vieram mais ... Lima Barreto , Gogol , Dostoievski, Anatole  France , Camus e muitos outros. A cada página virada , soprava-lhe um fôlego novo no espírito , uma revolta contra  a trajetória pútrida e inglória da humanidade , uma visão sarcástica sobre todas as coisas foi-lhe durante muitos anos sua grande fé . Abandonara a Bíblia como  conjunto de livros que só serviam para formar discípulos de uma igreja corrompida e  moralmente decrépita e passou anos sem recitar seus salmos ou lembrar os versículos dos Evangelhos que narram a passagem do Cristo na terra . Empanturrava-se cada vez mais de toda aquela filosofia dos escritos dos grandes sábios do Ocidente e considerava-se mesmo já um pensador ainda não descoberto pela humanidade entrincheirada numa cultura vazia e pobre chamada de entretimento . Quando leu as primeiras páginas de A metamorfose de Kafka , maravilhou-se com o homem que acorda transformado em inseto e já se considerava mesmo um escritor literário e pensador da sociedade , como se costuma dizer aqui dos homens que se dedicam inteiramente a busca incessante de erudição e apontam com bases firmes de "racionalidades" os erros das massas populares e sua inércia e estupidez por não buscarem o "santo Graal" dos escribas e se alimentarem suas inócuas almas  apenas com cultura pop . Em certa época de sua vida chegou a beber a pior das cachaças e fumar cigarros , pois os escritores e músicos que admirava eram quase sempre alcoólatras       ou  consumidores de diversos tipos das chamadas "drogas ilícitas"  ... Copiava trejeitos , maneirismos e até a forma de falar dos seus "ídolos", quando , por exemplo , conhecia um grande músico de rock , escavava todos os detalhes de sua vida meteórica e logo depois metia-se em roupas , sapatos e tentava mesmo parecer o tal " rock star" morto. Foi Jim Morrison , sem cabelos longos e olhos claros ; uma versão "bronzeada" e menos rebelde de Renato Russo ... e tantos outros . Quando havia aprendido todos os maneirismos de um , descobria um novo de artista de comportamento autodestrutivo , pois os vivos não lhe interessavam nunca , pareciam-lhe artistas mansos , que não questionavam as corroídas engrenagens que movem esta nossa sociedade . Apesar do intolerável sarcasmo que lhe distanciava dos colegas de Universidade , alternava delírios de grandeza com a certeza de que tinha uma elevada missão a cumprir com a humanidade , orava sem religião pelo fim de todas as guerras e da miséria e passaram a ver-lhe como uma espécie de lunático que estava apto a conviver em sociedade , vestia-se sempre com roupas velhas e desbotadas , algumas manchadas e até rasgadas . Não era de temperamento difícil , mas tinha sérias dificuldades em firmar-se num círculo de amigos , procurava falar com todos e até conseguiu meter-se num grupinho de amigos da Universidade , mas teve pouca duração , esse sarcasmo , essa tal de ironia ... O templo do saber logo se lhe mostrou como um ambiente hostil , que fornecia papéis a indivíduos pedantes , que se tinham na conta de  filósofos  tropicais , destinados a refletir sobre a parcimoniosa carne dos bois nordestinos ou talvez sobre as rachaduras do solo sertanejo ... Já havia lido quase todos os clássicos do cânone do saber Ocidental e já acumulava alguns escritos próprios ,quando percebeu a inutilidade do "pergaminho dos fariseus" e prestou um exame para tornar-se servidor público , seria mais um de vários que já tentara e havia sido "reprovado". Mas eis que desta vez veio a aprovação na prova  teórica e nos exames médicos que o apresentavam como apto para exercer todas as funções exigidas pelo cargo público , as lágrimas , a euforia , o alívio ,a nomeação ,o exercício das funções e o minguado salário ... O primeiro salário lhe rendeu uma mochila , um aparelho eletrônico e duas camisas de algodão barato , ponto final nada mais lhe sobrou do primeiro salário! Antes de tornar-se funcionário público , o copo encheu-se e transbordou , bateu a porta , gritou , jogou a mochila dos livros nas costas , jogou cadeiras ... Como o personagem Kafkiano não sabia a razão da sentença ...
Alguns anos ... a rotina do funcionário público desvanecia seus sonhos , todos aqueles delírios e projetos escapavam-lhe da realidade em que se encontrava , amarrado a cadeira da administração pública . Mas seu trabalho não era burocrático e isso certamente não lhe tornou o protótipo lastimável de funcionário publico ideal da nação tupiniquim. Seu trabalho exigia atributos muitos distantes de carimbar e assinar papéis e a convivência com as mais bizarras situações e pessoas com problemas que variavam desde uma simples fuga familiar até os transtornos mentais que só os médicos seriam capazes de diagnosticar moldaram-lhe num novo individuo que ia metamorfoseando-se ... mais alguns anos... O livro sobre Budismo ,o Tao Te Ching e os Evangelhos da Bíblia , o violão , os três acordes de helpless ( Canção de Neil Young) , as viagens , falando com estrangeiros , a busca da paz interior...
Lágrimas , ah quantas escondidas no quarto por não conseguir consertar o mundo ! Lágrimas pela criança palestina , pelo mendigo da esquina, pelos misseis das nações , pelos soldados ... Mas também sorriu e gargalhou , pois aprendera que se as nações tinham suas armas de matar, Deus nos presenteara com uma arma ainda mais poderosa e inesgotável: o sorriso!
Hoje ... Hoje cumpre sua humilde missão ...

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